segunda-feira, 28 de março de 2011

O que é o homem na natureza? Um nada em relação ao infinito, um tudo em relação ao nada, um ponto a meio entre nada e tudo.

Um ser humano só cumpre o seu dever quando tenta aperfeiçoar os dotes que a natureza lhe deu.

Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas.

Cenário - A Natureza e a Cultura - Suserania e Vassalagem



O  1º movimento introduz o cenário e as personagens e caracteriza-se pela ausência de conflitos, pela harmonia entre o pólo da Natureza e pólo da Cultura, entre sujeitos e objetos. Há coordenação, complementação e harmonia. Descreve-se seqüencialmente um cenário de montanhas e rios no interior fluminense, os aspectos exteriores do "castelo / fortaleza / casa" de D. Antônio Mariz, e, logo a seguir, os interiores da construção, enfatizando uma antropomorfização da natureza e uma naturalização do homem, de forma que nessas três descrições o natural e o cultural constituam um cenário edênico, paradisíaco, no qual a natureza é a casa do homem, a casa é uma extensão da natureza e o homem opera a união das duas.

Assim, a escada de lajedo é construída metade pela natureza e metade pela arte”, pois nessa paisagem a “indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar os meios de segurança e defesa". A integração é completa: "havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza, rica, vigorosa e explêndida, que o vista abraçava do alto do rochedo"; nos aposentos de Ceci "parecia que a natureza havia se feito menina", e seu quarto, decorado com aves, animais e pedras preciosas, é apresentado como “ninho da inocência" ou "como a atmosfera do paraíso que uma fada habitava".

Exemplos dessa integração harmônica entre natureza e cultura podem ser fartarnente rastreados até o capitulo VIII. Esse clima edênico, paradisíaco está sugerido no brasão da família Mariz, no qual os três reinos, o vegetal, o mineral e o animal, estão enlaçados, numa clara simbologia ou, ainda, quando na descrição da missa rezada por D. Antônio diante de sua Família, a natureza é tomada como uma catedral aberta, imagem ao gosto da mais genuína tradição romântica: Chateaubriand, Lamartine, Garrett, Alexandre Herculano, Gonçalves Dias, para ficarmos nos exemplos mais próximos da tradição romântica luso-brasileira. Nessa missa, não apenas o homem, mas “a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!, "uma prece meio cristã, meio selvagem", vale dizer, uma oração que integra o cultural ao natural.

A ideologia romântico medieval que embasa O Guarani toma a composição piramidal da sociedade, dividida em "senhor" e "servos", em "suserano" e "vassalos", e em "soberano" e "súdito", como princípio natural da ordem e da paz. D. Antônio Mariz exerce em seus domínios o direito natural, conforme concebido na Idade Média, a partir da Suma Teológica, de Santo Tomás de Aquino. O chefe praticava tanto a lei natural quanto a lei humana. Para Santo Tomás de Aquino, a lei natural é o ato da razão e vontade de Deus, que prescreve a observância da origem moral, proíbe a violação e que se manifesta às criaturas na luz natural da razão; e a lei humana é um preceito da razão  ordenado para o bem da sociedade, emanado da autoridade competente e por ela promulgado (Suma Teológica, XCIV, 1 e XCVI, 4). D. Antônio Mariz tipifica o exercício das duas leis, como um senhor feudal que associa o poder humano e espiritual, sendo guerreiro e sacerdote ao mesmo tempo: "Assim vivia, e no meio do sertão, desconhecida e ignorada, essa pequena comunhão de homens, governando-se com as suas leis, com seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo habito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas.

A ideologia romântico-medieval que ilustramos até aqui com exemplos do romance é justificada por uma espécie de “modelo natural” que envolve o cenário e as personagens desde a primeira página. Aí, como já referido, a descrição entre o rio Paquequer e o Paraíba é assim descrita: "dir-se- ia que vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro com os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática: suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso sofre o látego do senhor."

Essa descrição inicial vale como índice não só da estrutura feudal dentro da sociedade chefiada por D. Antônio, mas também da situação inicial de Peri diante de Ceci. O índio guarani (goitacá) chama a fidalga portuguesa de Iara, que significa Senhora, e aparece referenciado várias vezes como escravo submisso, diante da mulher que ele adora com  fervor religioso, como um devoto diante de Nossa Senhora, ela Virgem Maria, de que já ouvira falar na educação mariana dos jesuítas, com a qual teve um ligeiro contato. Ao final, senhora e escravo serão descritos como irmã e irmão, sugerindo uma integração total dos elementos, de acordo, com a ideologia do autor, que agora vai afirmar a supremacia da Natureza sobre a Cultura, pois só com a integração total na natureza poderia haver paz.

Conflitos - Natureza e Cultura - Os bons e os maus

O  2º Movimento é o em que os conflitos começam a se delinear, as personagens vão entrando em choque até a quase destruição de todos eles.

O código dramático, a ação conflitual instaura-se quando elementos conflitantes começam a emergir dentro de um clima harmonioso que marca o início do romance e que ocultava os conflitos latentes entre o natural e o cultural e as oposições internas dentro de cada conjunto.

Assim, há dois eixos fundamentais e, em torno deles, desdobram-se todas as relações conflituais:

1º - Natureza x Cultura

2º - Os Bons x Os Maus

Formam-se assim quatro subconjuntos:

1. Os bons da natureza - Peri e os índios da tribo goitacá, pertencente à nação guarani, dóceis, nobres, leais, tomados dentro de uma perspectiva sempre positiva.

2. Os maus da natureza - os índios aimorés, antropófagos, descritos com "fisionomias sinistras, nas quais as braveza, ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana".

3. Os bons da cultura - D. Antônio Mariz, sua família, especilamente Cecília e, pouco abaixo, Diogo, o filho desastrado; D. Lauriana, a esposa paulista orgulhosa, preconceituosa; Isabel, a suposta filha natural do fidalgo com uma índia, que ele não perfilhou, mas assumiu discretamente como filha adotiva. Seguem-se o cavalheiro Álvaro, corajoso, cortês, dentro do mais restrito figurino das novelas medievais e o escudeiro de D. Antônio, Aires Gomes, espécie de chefe-de-armas do fidalgo.

4. Os maus da cultura - capitaneados pelo vilão, assassino e traidor Loredano, ex-frei Ãngelo di Lucca, que de posse do roteiro das minas de prata descobertas por Ribeiro Dias, no interior da Bahia, pretende vender o seu segredo ao Rei de Espanha, enriquecer e, ainda, destruir D. Antônio Mariz e sua família, raptar e possuir sexualmente, pela força, se necessário, a casta filha loira de olhos azuis do fidalgo. Seguem-se-lhe os demais aventureiros: Rui Soeiro e Bento Simões, entre os mais ativos.

Os elementos negativos e positivos da cultura e da natureza acabam polarizando-se em relações opositivas, regidas por um sentido geral de simetria, cuja bilateralidade vai compondo módulos narrativos que mantêm uma perfeita proporcionalidade.

A partir do segundo capítulo, Alencar começa a desdobrar os sujeitos em pares opostos, repetindo um modo dual de oposição, seja segundo a raça, a moral, a nacionalidade, a religião, os costumes e os sentimentos.

D. Antônio Mariz, fidalgo português, e sua esposa, D. Lauriana, paulista, não fidalga.

Cecília, filha legítima, loira de olhos azuis, e sua irmã por adoção, Isabel, filha natural "dos amores do fidalgo por uma índia", morena de cabelos e olhos escuros.

Álvaro, cavalheiro gentil, de fala cortês e bem cuidada, pretendente à mão de Cecília, Loredano, bandido e assassino, de fala italianada, recheada de lugares-comuns, que pretende raptar Cecília e destruir seu pai.